quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A fogueira e o broto

Parte V

Há pouco menos de uma hora adormecera. Até que o corpo, cansado e totalmente relaxado, voltou lentamente a se revigorar, como se quisesse acordar, como se alguém o despertasse. Apenas os olhos insistiam em permanecer fechados. Talita movera seu corpo rapidamente. Fingiu que não estava acordada. "Por que vou acordar agora? Acabo de pegar no sono!". Depois de alguns segundos, abriu os olhos. Ainda embaçados, os amendoados olhos de Talita pareciam enganá-la com uma luz que ainda não vira. Apertou-os. Abriu novamente as janelas da alma e percebeu que não estava só. A luz que vira era da chama de fogo. Bem à sua frente. E combinava perfeitamente com a crepitação aos ouvidos. O que havia acontecido? O que aquele fogo estava fazendo ali? Talita virou o corpo para o outro lado, estava com os braços dormentes de frio. Estava ansiosa para levantar-se e tornar a olhar o fogo, mas não tinha a ajuda dos braços. Ativou seu olfato. Achou que estava delirando. Não poderia ser. Tentou, tentou e... levantou-se, finalmente. Virou-se. "Ah!", saltou aguda a vogal de sua garganta num grito estridente! Boquiaberta, perplexa... balbuciava uma pergunta... "Não precisa ter medo de mim, acho que você já sabe disso.", disse o Jardineiro muito tranquilo, ajoelhado e mexendo em alguma coisa que queimava ao fogo. Ou melhor, assava. Sim, era peixe mesmo. A menina não delirara. Não quanto ao peixe, mas quanto ao homem à sua frente, não estava tão certa... "Você... como... onde...", e desistiu de perguntar. Olhou para ele e o achou tão belo. Não havia pensado nisso antes. Achou-o belo, mas não soube porquê. Não havia nada nele que uma menina considerasse bonito, mas era totalmente desejável, amável. Era forte, mas era manso. Seu olhar era firme, mas suave. Sua voz era poderosa, mas doce. Aproximou-se do rosto iluminado pelo fogo e... tocou. O Jardineiro parou de olhar o fogo e começou a virar o rosto para ela, que ainda não tirara sua mão da face daquele homem. E, em milésimos de segundos, o coração de Talita disparou e os olhares se encontraram. Naquele momento o mundo parou. Som algum chegou aos seus ouvidos. Ela esqueceu a fome que sentia, ou a sede. O vento paralisou. A menina sentiu que aquele momento era o que desejara a vida inteira, apesar de nunca imaginá-lo. Abaixou a mão sem mover os olhos. O Jardineiro tomou sua mão entre as suas e, como se aprofundasse ainda mais o seu olhar, permitiu que as palavras dançassem para fora dos lábios que se abriam lindamente: "Eu amo você."

Pausa.

Não conseguiam deixar de se olhar. Era lindo. Talita se esforçou, tentou... não queria isso, mas não conseguiu responder. Ela lembrara de tudo que havia pensado sobre ele: que ele a abandonara, não respondera a nenhuma de suas perguntas, dera a ela um vaso sem planta e tinha o péssimo costume de aparecer e desaparecer nas horas mais impróprias. E, puxando a mão para longe dele, virou o rosto para o olhar o fogo. "É peixe?", perguntou. E o Jardineiro, como se soubesse de tudo que havia acontecido dentro dela, respondeu: "Eu me tornaria esse peixe e enfrentaria o fogo para alimentar você, para você não morrer, Talita.". Completamente surpreendida pelas palavras que foram como seta em seu coração, a menina desiste de segurar os pensamentos. É como se ela soubesse que, estranhamente, nada ficava oculto ao Jardineiro. "Então por que você age assim? Por que desaparece do nada, aparece de novo? Você me pôs nessa estrada e simplesmente foi embora!". Outra pausa. Uma menor dessa vez. A menina sentiu que falara coisas que não devia. De alguma forma, suas palavras soaram desagradáveis até mesmo para ela. E o Jardineiro resolveu falar: "Você não tem que saber o que faço ou deixo de fazer. Você não tem que saber a minha forma de agir. E eu não tenho obrigação de aparecer para você. Onde é que você estava enquanto eu cultivava todo esse campo à sua volta, Talita? Você sabe quais são as flores que plantei antes da curva do fim da estrada? Você estava lá quando eu decidi quais plantas ficariam em volta da grande árvore? Onde você estava, Talita?" O coração apertou. Essa última pergunta foi difícil de ouvir. Foi exatamente essa pergunta que a menina fizera ao homem há pouco. E ele voltou a mexer na fogueira. "Não sei de nada do que você está falando.", disse a menina, agora bem mais mansa. Ajoelhou-se ao lado dele e repetiu: "Não sei de nada.". Ele sorriu. Virou-se de lado e retirou de um balaio, que a menina ainda não vira, um odre e um pão. Entregou o odre à menina. Partiu o pão. Tirou o peixe do fogo e o pôs dentro do pão. Entregou também à menina. Ela ceou. Ele ficou ali ao lado dela. Ao terminar a refeição, Talita encostou a cabeça no ombro dele e sussurrou: "Você vai de novo, não é?". O Jardineiro esboçou um sorriso, pegou na mão da menina e respondeu baixinho em seu ouvido: "Meu amor, você ainda não entendeu que eu nunca fui?"



...

Assustou-se. Abriu os olhos. Num pulo, Talita se levanta no meio da noite e se assenta no chão de terra. Onde estava a fogueira, o Jardineiro, a fogueira? Nada estava ali. Será que tudo não passara de um sonho? Quase deixou que seu coração se entristecesse quando... ah, que linda cena percebera! Talita baixou os olhos ao seu lado e ali estava seu vasinho! Mas não era sua pura afeição ao objeto que a movia... havia brotado dele uma pequena folha verde, cheia de vida e esperança! Agora sim ela compreendera que a semente estava ali o tempo todo. Ele estava ali o tempo todo. E havia se tornado o seu maior amor, o seu sonho de menina. Abraçou seu vasinho, agora com planta. Deitou-se e quis sonhar com o Jardineiro. Olhou para o céu. Lembrou-se do calor da fogueira.



E dormiu, esperando que o sol a acordasse.

(continua)

3 comentários:

  1. E como é terrivel e maravilhoso quando, finalmente, entendemos que somo amados por Ele! E como é ainda mais maravilhoso e sublime quando confiamos nesse Amor! ;D

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  2. Com certeza é o melhor momento de nossas vidas: a descoberta de que Deus nos ama.

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  3. O desejo do sonhador torna-se consciente………

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