sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Órfã

1.
um dia eu vi uma manada correndo
desesperados invadindo o quintal
da minha casa
eu não tinha qualquer alguém
a quem eu pudesse contar
que eu vi uma manada correndo
desesperados invadindo o quintal
da minha casa
porque eu morava sozinha
e a minha casa na verdade
era eu

2.
e quando eu vi uma manada correndo
desesperados invadindo o quintal
da minha casa
e eu não tinha qualquer alguém
com quem eu pudesse contar
eu construí um muro ao redor
da minha casa
para nunca mais ver uma manada correndo
desesperados invadindo o quintal
da minha casa

3.
depois que eu construí um muro ao redor
da minha casa
para nunca mais ver uma manada correndo
desesperados invadindo o quintal
da minha casa
tinha um e outro alguém
dizendo que eu não tinha qualquer alguém
com quem pudesse contar
e eles tentaram derrubar
o muro que eu construí ao redor
da minha casa

4.
então eu comecei a rir e a mentir que
tinha um e outro alguém
com quem eu podia contar
dentro do muro que eu construí ao redor
da minha casa
que eu pintei de cetim negro
que eu toldei de cílios postiços
que eu enfaixei de sorriso
para nunca mais tentarem derrubar
o muro do quintal invadido
da manada correndo desesperados
da minha casa.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O anjo no mármore

Eu vi o anjo no mármore
cavei no carvão da cova
inutilmente: morri.
Mortal, merecida e maleficamente morri.
Como morrem todos dessa mata morta,
como os meninos morrem nesse morro torto,
como a gente morta que de porta em porta morre,
paulatinamente morre.
Esfomeada, esfaqueada e famigeradamente morre.
Como morrem todos dessa favelada,
Como os meninos fracos temem a fivela,
feridos, fatigados e fotografados
meninos da manchete
do mundo moribundo
manchado de mortalha
enfiado na cova,
o covil da morte,
feita de mármore
onde vi o anjo,
e o anjo me viu,

e voou.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Soneto das três marias

Quero uma canção bonita para cantar de manhã:
que fale de amor à vida; que tenha cheiro de maçã;
que seja real de realeza; também real de sonho ao fim;
que verta verdades, não certezas, com toque de jasmim.

Quero a pedra preciosa para usar como anel:
que deixe minha mão em prosa ou em poema de cordel;
que tenha o vivo brilho das estrelas; etéreo morto em céu azul;
que saiba selar cartas e escrevê-las a lente ou olho nu.

Quero o silêncio agudo para cortar a maré:
que deixe meus ouvidos turvos; que não afogue a minha fé;
que o oceano afunde tudo que em ondas vai a flutuar;
que seja a destreza meu escudo na luta pelo mar.

Quero as três marias juntas: a fé, a letra e a canção:
que todo aquele que as vislumbra se lembre do que elas são.